Quando nasce um filho, nasce também o caminho para o que realmente importa
- botinhadrive
- 23 de out.
- 4 min de leitura

Donald Woods Winnicott é um dos meus pensadores favoritos sobre a infância. É ele quem nos apresenta o ponto de virada:
“Existe algo em ter um bebê que altera os pais. Eles passam a estar orientados para uma tarefa especial.
O bebê, a criança nova e a criança mais velha nos lisonjeiam por esperarem de nós uma certa confiabilidade e disponibilidade, ao que respondemos talvez, em parte, devido a nossa capacidade de identificarmo-nos com os filhos. [...] Desse modo, nossas próprias capacidades são descobertas e desenvolvidas pelo que nossos filhos esperam de nós.
Por um sem-número de modos, alguns sutis e outros nem tanto, as crianças produzem à sua volta uma família, e talvez o façam porque precisam de algo, algo que proporcionamos porque temos um conhecimento do que sejam a expectativa e a satisfação.
Entenda-se que não fazemos isso mediante um esforço deliberado ou pelo estudo de livros ou ouvindo palestras, mas sim porque as crianças pequenas extraem tudo o que há de melhor em nós.”
O nascimento de um filho é provavelmente o momento mais potente de transformação que você terá na sua vida. É uma oportunidade que você não deveria deixar escapar para se tornar uma pessoa melhor. Porque os bebês fazem isso com seus pais. Dão uma chance real de amadurecimento, de reorganização de valores e prioridades e de cultivo de uma vida mais significativa.
Um bebê nos convida — desde o início — àquilo que mais de dois milênios de reflexão humana buscaram nomear como os pilares de uma vida que vale a pena. Encontrar um sentido para a vida é provavelmente uma das questões mais antigas da humanidade — e também uma das mais urgentes: é um dilema de pelo menos 2.500 anos que todos os grandes mestres de todas as grandes tradições de sabedoria tentaram solucionar ao longo de todas as épocas.
Se pudéssemos retornar ao início da civilização ocidental e perguntássemos aos antigos filósofos como viver uma boa vida, a resposta seria "com areté", palavra grega que significa "virtude" ou "excelência", mas cujo sentido é ainda mais profundo – transmite o propósito de “expressar a melhor versão de si mesmo, instante a instante”.
Se avançarmos no tempo e escutarmos a ciência contemporânea, poderemos apreciar o estudo de Harvard sobre o Desenvolvimento Adulto, que, por mais de oito décadas, procurou descobrir, entre milhares de métricas, o que contribui para uma boa vida. Um fator crucial se destacou de forma tão decisiva que pôde ser sintetizado como um único princípio: “Bons relacionamentos nos mantêm mais saudáveis e felizes. Ponto final.”[1]
Num tempo em que confundimos felicidade com conquista, prazer com plenitude e sucesso com sentido, a sabedoria antiga e a ciência moderna convergem em uma mesma direção: a boa vida nasce do pertencimento — dos vínculos profundos que nos dão força para enfrentarmos os desafios da vida, pondo em prática as virtudes que nos permitem superá-los. E é provável que nada evoque tanto essa essência quanto a chegada de um bebê. Um filho nos transforma não apenas porque precisa de nós. Mas porque nos revela um saber ancestral, muito mais antigo do que qualquer filosofia: a boa vida começa nos braços de alguém confiável. E continua através daquilo que conseguimos recriar, sustentar e reencontrar deste vínculo primordial ao longo de nossa existência.
Talvez devêssemos reconhecer que o bebê reúne o que passamos uma vida inteira tentando entender e alcançar: ele é um ser relacional por excelência, capaz de gerar vínculos profundos antes mesmo das palavras. Além disso, o bebê é, ele próprio, um exemplo do cultivo da virtude. Com esforço e dedicação incansável, ele se lança — dia após dia — à conquista dos marcos do seu próprio desenvolvimento. Disciplina, curiosidade, confiança e entrega estão inscritas em seu movimento para aprimorar-se. Há também nele uma presença que se estende e transforma os outros, revelando capacidades que nem sabíamos possuir e fazendo despertar o que há de mais verdadeiro naqueles que o cercam.
E com verdadeiro, não quero dizer perfeito. Retorno a Winnicott: “Os filhos precisam de seres humanos à sua volta que tenham êxitos e fracassos. Gosto de usar as palavras ‘suficientemente bons’. Pais suficientemente bons podem ser usados por bebês e crianças pequenas, e suficientemente bons significa você e eu. Para sermos coerentes e, assim, previsíveis para os nossos filhos, devemos ser nós mesmos. Se formos nós mesmos, os nossos filhos podem passar a conhecer-nos.”
Portanto, não posso dizer o que deve ser feito. Winnicott foi cirúrgico de novo: “O meu problema consiste em encontrar um modo de dar instrução sem instruir.” Cada família tem sua singularidade, seu tempo emocional e sua história e cada bebê oferece seu olhar e seu gesto espontâneo de forma única. Em um mundo em que se sentir sobrecarregado diante do excesso se tornou frequente, não poderia propor mais informação. Ao contrário, o esforço aqui será o de encontrar o essencial.
A partir de hoje, toda semana, compartilharei um texto. Um convite à reflexão, ao reencontro com o que há de profundo na experiência de cuidar de um bebê e de uma criança pequena — e de se deixar cuidar por ele.
Os textos serão enviados para as famílias que me acompanham e também publicados em um blog. Se gostarem, sintam-se à vontade para dar seus preciosos feedbacks e para compartilhar com famílias que possam se interessar e se beneficiar desse trabalho que está nascendo após um período muito cuidadoso de gestação. Trechos dele aparecerão nas redes sociais, mas o coração do meu trabalho permanece onde sempre esteve: na intimidade do vínculo.
Referências Bibliográficas:
[1] A frase é de Robert Waldinger, diretor do Estudo de Desenvolvimento Adulto de Harvard, e está presente no site do livro The Good Life, que resume os principais achados da pesquisa. Disponível em: https://the-good-life-book.com/




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